A financeirização das políticas sociais na América Latina
- Leonardo Sodré Corrêa
- 3 de dez. de 2024
- 8 min de leitura
A segunda metade do século XX foi bastante turbulenta para os Estados latino-americanos. A oscilação que esses países passaram é notável: entre regimes ditatoriais e tentativas de democratização, entre políticos “estabilizadores” /do sistema e outsiders que prometiam mudanças radicais, entre ondas rosas de esquerda e reformas liberalizantes de direita, entre desenvolvimentismo e neoliberalismo. Todos esses vetores do agir político alternaram-se na América Latina de 50 anos para os dias atuais, porém os problemas que assombram as nações pouco parecem ter mudado, vide os indicadores sociais problemáticos (alimentação, educação, saúde, moradia), o baixo crescimento e uma constante ameaça inflacionária própria da América Latina.

Esse contexto único nos ajuda a elucidar a força do sentimento de mudança e de necessidade de “modernização institucional" que, ao entrar na década de 1990, inspirou correntes políticas ligadas ao neoliberalismo em grande parte do continente americano, resultando num fenômeno de intensa liberalização econômica, quase que aos moldes clássicos.
O fenômeno neoliberal surge como uma tentativa de completa negação do paradigma político e econômico vigente no mundo, uma ideologia totalizante que buscava reorganizar a sociedade, antes marcada pelo keynesianismo e por uma forte regulação administrativa, de acordo com o princípio universal da concorrência, com forte influência do chamado Consenso de Washington.
Essa reorganização passou por diversas esferas sociais (daí se explica a faceta totalizante da ideologia), manifestando de maneiras distintas entre os países, porém com um evidente fenômeno em comum: o papel cada vez mais proeminente das finanças na acumulação capitalista, uma faceta exclusiva do capitalismo contemporâneo, processo que ganhou a alcunha de “financeirização”.
Tal processo é observado, no cenário macro, em escala global (“globalização das finanças”) e, no cenário micro, numa total reorganização do papel do Estado com relação a economia interna, passando a ser responsável pela propagação, criação e regulação/administração de mercados, provocando uma onda de privatizações e delegando funções, antes estatais, à iniciativa privada, que passa a prestar serviços sociais em conjunto com às instituições de capital financeiro. É sobre esse contexto que os autores Pietro Borsari, Alex Palludeto e Marcelo Proni tecem uma análise sobre a penetração das finanças na prestação de serviços sociais no artigo "Four forms of financialization of social policy under neoliberalism in Latin America", que trata da financeirização das políticas sociais.
No artigo, os pesquisadores da UNICAMP propõem que toda política social financeirizada é atrelada ao contexto e ideologia neoliberal, visto que programas sociais moldados pela financeirização abrem espaço para iniciativa privada de modo direto (criação de mercados e/ou apropriação dos mesmos por empresas privadas) ou indireto (com serviços bancários para transferência de renda, por exemplo). Um terceiro caso é aquele em que o Estado incorpora características financeiras e neoliberais (prestação de serviços com o fim principal de “aumentar a capacidade concorrencial” de parcela da população), demonstrando a íntima relação entre estes dois fenômenos.
Entretanto, devido à complexidade do tecido social do Estado (e do capitalismo) contemporâneo, serviços quase que completamente distintos, como a operação de empresas estatais com capital misto e simples educação financeira (“cidadania bancária”), podem ser caracterizados como frutos da financeirização nos serviços sociais. Portanto, os autores baseiam sua análise por meio de três vetores para a identificação desse fenômeno: a relação entre Estado e mercado (privado), o tipo de serviço prestado (“financeiro” ou “não-financeiro”) e o papel do “capital fictício” na dinâmica da respectiva prestação de serviços.
O primeiro vetor da análise diz respeito ao papel do Estado numa política social analisada, se está mais relacionado à provisão direta de recursos e/ou bens ou se restringe-se à mera regulação e supervisão do serviço prestado por entidades privadas. Medidas como incentivos fiscais encaixam-se nesse vetor de análise, com um exemplo sendo o mecanismo de “mecenato” da Lei Rouanet, a partir do qual empresas podem abater parcelas dos impostos recolhidos em investimentos em projetos culturais aprovados previamente pelo Ministério da Cultura.
A segunda dimensão da financeirização está relacionada ao tipo de serviço prestado, no qual os autores citam duas categorias: serviços “financeiros” e serviços “não-financeiros”. A primeira categoria engloba serviços diretos de crédito, financiamento e transferência de renda, ou seja, serviços que se apoiem em instrumentos financeiros para suprir as necessidades sociais de um grupo sem diretamente prestar um serviço “físico” (tangível). Já os serviços “não-financeiros” são aqueles em que haja direta provisão de um serviço ou atividade econômica para beneficiar parcela da população, tal qual educação e saúde.
O último sentido da financeirização versa sobre o papel do capital “fictício” na arrecadação e/ou outras etapas da prestação desses serviços, podendo acontecer direta, como na venda de títulos, ações e seguros, ou indiretamente, por meio de aluguel ou outras formas de acumulação. Este último vetor funciona mais como uma subdivisão das outras duas categorias de financeirização de políticas sociais, de forma a caracterizar melhor cada caso no modelo.
Para os autores, ao combinar esses vetores, seriam encontradas quatro formas proeminentes de políticas sociais financeirizadas. A primeira seria resultado de empresas financeiras provendo serviços financeiros em áreas clássicas de política social, como aposentadoria e saúde.
Nesse cenário, os serviços, que antes funcionavam em sistema de contribuição coletiva, passam a ser operados pela ótica privada, delegando os riscos e o ônus do financiamento do serviço ao indivíduo “beneficiário”, como no clássico caso do sistema previdenciário chileno, reestruturado durante a ditadura de Augusto Pinochet. No sistema chileno, a contribuição coletiva deu lugar a um sistema de vários pilares, no qual o principal seriam fundos privados de investimento, baseado em contribuições individuais.
Esse sistema foi bastante defendido por supostamente abrir novas oportunidades de investimento que incrementariam a economia nacional, já que o dinheiro das contribuições seria depositado nos fundos privados que os aplicariam em oportunidades de investimento, que renderiam maiores frutos em relação à poupança estatal. No entanto, o que se observou foi um baixo incremento no crescimento interno, já que os fundos privados investiam maciçamente no mercado financeiro e em ativos estrangeiros, aumento dos riscos de perda de patrimônio devido às flutuações econômicas e crises financeiras (risco intensificado com as longas cadeias de derivativos), e um crítico problema de pobreza na terceira idade, devido a parcelas de pagamento com valor insuficiente para o sustento do contribuinte.
A segunda forma de financeirização de políticas sociais tange a corporações-não financeiras (empresas relacionadas a produção ou a prestação de serviços) com extenso financiamento (capital bancário) provendo serviços “não-financeiros” clássicos. Nesse caso, há uma coadunação entre capital produtivo e capital financeiro para a prestação de algum serviço clássico (educação, por exemplo), cabendo ao Estado o mero papel de criar e supervisionar mercados para a provisão de tais serviços. Como tal forma de financeirização é intensamente atrelada à dinâmica do capital “fictício” (futuro, adiantamento de receitas/tomada de empréstimos e/ou financiamentos), observa-se uma forte pressão pelo lucro rápido para o capital bancário (“princípio da maximização do valor ao acionista”), o que condiciona a adoção desse modelo para a prestação de serviços que possam ser transformados em mercadoria, assim como acontece com o sistema privado de ensino no Brasil. Nesse exemplo, podemos seguir o raciocínio do FIES (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior), já que a dinâmica de empréstimos/financiamento para o pagamento de mensalidades em instituições de ensino superior privadas está ativamente relacionada a dinâmica supracitada, assim como o da expansão dos grandes conglomerados da educação básica privada no país (Grupo Salta Educação, Somos Educação...) pela via das fusões e outras operações de concentração econômica no mercado da educação brasileira.
Para os autores, uma terceira faceta da financeirização no âmbito social estaria relacionada ao setor público oferecer, em áreas clássicas de políticas sociais, serviços financeiros ou adaptar os programas sociais já existentes de forma a incorporar aspectos da financeirização.
Por se tratar da ação direta do Estado, esse acaba por ser o maior conjunto de políticas, para o qual os pesquisadores definem quatro subgrupos:
1) A monetarização das políticas sociais, que engloba aquelas cujo benefício direto é um serviço financeiro, como programas de assistência (BPC, Bolsa Família...) e moedas sociais (como meio de pagamento de auxílios);
2) O uso de instrumentos de crédito para a expansão do acesso a serviços prestados pela esfera privada e a outros bens no geral, tais quais o microcrédito, bancos sociais (moedas socias como financiamento de microcrédito regional), financiamento para estudos e casas;
3) A emissão de títulos de dívida (“títulos sociais”) com fins de financiar projetos sociais, com um mecanismo que se assemelha a um “shark tank de projetos sociais”;
4) A reestruturação de políticas existentes de modo a emular um modelo de administração de mercado.
Nota-se, como consequências da financeirização deste grupo de políticas, a expansão do serviço bancário a parcelas da população que se encontravam marginalizadas, o que por sua vez acarreta crescente endividamento familiar, parte pela expansão do consumo de novos bens/serviços que antes não possuíam acesso (o que não significa a ausência de necessidade) e outra pela falta de planejamento e/ou educação financeira (expansão de contratação de serviço de crédito consignado, por exemplo).
Finalmente, a quarta e última forma principal de financeirização das políticas sociais abarca companhias estatais de capital misto provendo serviços “não-financeiros” clássicos, como por exemplo abastecimento de água, energia elétrica, transporte público etc. Nesse cenário, novamente observa-se uma pressão do “princípio de maximização do valor ao acionista”, o que resulta em uma administração de uma empresa pública (criada para prover serviços ad hoc) sob a ótica de uma privada (que visa um balancete superavitário, lucro).
Esse princípio cristaliza-se ao analisar a política de dividendos da Petrobras, uma das estatais mais importantes do Brasil por abastecer o país do combustível fóssil responsável por mais de um terço da matriz energética nacional, fator que explica a importância indireta da estatal até mesmo para a redução de pressões inflacionárias de custos (de oferta). Porém, ao considerar que a empresa chegou a dedicar 60% do caixa para pagamento de dividendos e vem batendo lucros anuais históricos, muito devido aos altos preços de produtos derivados do petróleo (além da gasolina), nota-se tal ótica privada de administração e priorização da redistribuição de dividendos (relacionados ao processo de financeirização) em detrimento a investimentos produtivos (relacionados a prestação dos serviços).
Em suma, nota-se cada vez mais intensamente o papel da ideologia neoliberal na formulação/reformulação de políticas sociais, principalmente sob a faceta da financeirização. Logicamente, existem transformações tecnológicas intrinsecamente relacionadas a esse processo que podem (e devem) ser absorvidas para fins de maior eficácia na prestação de serviços: as moedas sociais são uma interessante ferramenta para o fomento de pequenos comércios locais pelo microcrédito (a juros baixos) ao mesmo tempo em que se garante maior acesso de parcelas da população a bens e serviços, traçando uma parceria entre setor público e setor privado (microempresários) que colabora para uma maior transferência de renda.
Em contraponto, nota-se que a financeirização intensificou a oligopolização dos mercados criados em cima de políticas sociais; estes normalmente abertos com brechas na prestação de serviços, ou seja, com uma intensa precarização e decadência do serviço público, principalmente na educação básica e ainda mais na superior, já que com o acirramento da concorrência (também relacionado e fator de reforço da ideologia neoliberal) pelo ensino superior público, abre-se uma brecha para a absorção dessa demanda pelo setor privado.
É possível pontuar, também, que as políticas sociais mantidas majoritariamente pelo Estado tangem a esfera dos serviços de “proteção social”, que visam apenas combater a miséria, pobreza extrema e fome, à exemplo, para (novamente na ideologia neoliberal) reforçar e resgatar a capacidade competitiva destes setores mais combalidos da sociedade, enquanto os serviços de “promoção social” estão geralmente contidos nos mercados da iniciativa privada, como mobilidade urbana e educação, possivelmente pelas maiores perspectivas de lucros rápidos nesses em relação aos primeiros.
A alternativa posta para solucionar, ou ao menos mitigar, os crônicos problemas sociais e econômicos encontrados na América Latina envolve estudar os impactos de políticas sociais na população e encarar as finanças não como solução, mas sim como instrumentos para a formulação de políticas mais efetivas.
Referências:
BORSARI, Pietro; PALLUDETO, Alex; PRONI, Marcelo. Four forms of financialization of social policy under neoliberalism in Latin America. Encontro da Anpec, 2024.