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A inflação na América Latina em perspectiva marxista

Desde o princípio da colonização, a América Latina lida com grandes vulnerabilidades em seus sistemas econômicos nacionais, por fatores relacionados desde à dependência na exportação de produtos primários para o “centro” (desenvolvido) da economia mundial até uma forte restrição externa e um entrave aos investimentos produtivos. É perceptível, também, que mesmo nas épocas de maior crescimento econômico latino, mantinham-se intensos os problemas estruturais tanto produtivos (industrialização incompleta) quanto sociais (conflitos distributivos). Nesse contexto, evidencia-se um componente principal desse cenário econômico adverso: a inflação, que se manifesta de forma mais acentuada nos países latinos em comparação com a média do G7, representação principal do “centro”, e com a média global desde 1980. Estes 40 anos de inflação (à exceção do período referente ao fim da década de 2000, possivelmente distorcido pela Crise de 2008) acima da média global apontam a necessidade de se entender o fenômeno inflacionário latino-americano, que aparenta ser único.


            Entretanto, ao estudar o tema, notam-se lacunas, tanto nas principais teorias que tangenciam o mainstream (ortodoxia, institucionalismo) quanto nas que compõem a dita heterodoxia econômica (estruturalismo, keynesianismo). Acerca disso, os autores Leonardo Leite, Paula Helena Ayres e Álvaro Martins buscam elaborar um modelo teórico que descreva o movimento inflacionário da América Latina se respaldando em teóricos consolidados do campo marxista, produzindo o artigo “Uma hipótese para a inflação latino-americana: conexões entre a teoria da inflação de Anwar Shaikh e a teoria da dependência de Ruy Mauro Marini”.


Fonte: Leite, Ayres e Martins (2024)
Fonte: Leite, Ayres e Martins (2024)

Os autores revisam a literatura recente sobre a inflação na América Latina, destacando explicações predominantes e suas limitações. No campo ortodoxo, os estudos atribuem a inflação a fatores internos, como déficits orçamentários, choques de preços e expectativas racionais dos agentes econômicos. O modelo sugere que reformas fiscais, mesmo que superficiais, podem reverter expectativas inflacionárias e estabilizar preços. Entretanto, essa abordagem é considerada limitada, pois reduz o problema inflacionário a uma questão de responsabilidade fiscal, ignorando fatores estruturais como a dificuldade de atração de divisas e investimentos.


Outros autores ortodoxos analisam a inflação na América Latina como um fenômeno mais local, influenciado por déficits fiscais e limites de endividamento. O perfil do endividamento explica como déficits por desequilíbrios comerciais geram dívidas em moeda estrangeira, vulneráveis a flutuações cambiais, como ocorreu durante o “Choque Volcker”. Em contraste, déficits voltados a investimentos estratégicos podem gerar retornos que compensam a dívida, impulsionando emprego e consumo sem depender do câmbio. Mesmo defensores da relação déficit-inflação reconhecem que o problema não é o déficit em si, mas a sua gestão e a viabilidade de pagamento.


Os autores fazem uma importante ressalva quanto à capacidade de endividamento dos países latino-americanos: a geração de dívidas futuras nesses países é mais restrita que os países centrais devido a uma “má reputação” pela série histórica de endividamento, rolagem de dívidas e moratórias. Entretanto, os teóricos da ortodoxia limitam-se em sua explicação até tal grau de aprofundamento, visto que as possíveis razões para a má reputação e a dificuldade de obtenção de divisas ser algo exclusivo (ou mais intenso) dos países latino-americanos são “azar” e má alocação de recursos ou formulação de políticas com endividamento por pressões de grupos sociais específicos, evidenciando uma grande lacuna no raciocínio, distanciando os modelos elaborados tanto da experiência histórica quanto da realidade observada.


Economistas institucionalistas atribuem a má reputação econômica de países latino-americanos à presença de “instituições extrativas”, originadas do passado colonial, associando-as à maior volatilidade econômica. Essa visão se aproxima da teoria de Alexander Hamilton, que relaciona a vulnerabilidade dessas economias, centradas na exportação de produtos primários, à condição de tomadores de preços no comércio internacional. Como o preço desses produtos é definido externamente, essas economias ficam expostas a choques de preços.


Outra hipótese institucionalista para a origem de fenômenos inflacionários relaciona-se com extensos momentos de instabilidade política, ou seja, referente à qualidade e à força das instituições de um país. Nesse sentido, a “blindagem” política nos países desenvolvidos seria a razão de sua econômica, devido a sua capacidade de planejar cenários e elaborar políticas macroeconômicas acertadas no longo prazo.


Logo, em contradição com essa estabilidade do “centro”, uma América Latina instável, marcada por “tensões sociais” entre grupos com interesses distintos geraria uma constante necessidade de “apaziguar os incêndios” e concentrar as políticas no curto prazo para adequar um governo aos desejos de grupos específicos, dessa forma resultando em “políticas macroeconômicas falhas”, podendo levar ao endividamento, e sistemas tributários ineficazes, forçando os países latino-americanos a recorrerem à “senhoriagem” de moeda nacional, desembocando finalmente em um intenso processo inflacionário.


Defensores dessa hipótese argumentam que a fragilidade dos sistemas tributários nos países latino-americanos resulta de “instituições fracas”, conforme medido por Ari Aisen e Francisco José Veiga (2006) através de indicadores como crises governamentais, mudanças de gabinete, índice de liberdade econômica e escala política. Os dois primeiros refletem a volatilidade política na região, mas os últimos são simplificações que nem sempre capturam a realidade. Por exemplo, o Brasil experimentou crescimento econômico e baixa inflação durante o “Milagre Econômico” sob a Ditadura Civil-Militar, um regime distante da democracia.


Além disso, Aisen e Veiga tocam na instabilidade político-institucional sem explorar os impactos da política externa e das relações internacionais, ignorando como certos grupos políticos podem mitigar pressões internas e externas. Assim, concluem que essas fragilidades institucionais prejudicam a condução das políticas monetária e fiscal, resultando em inflação elevada, reforçando a ideia de que governos latino-americanos são responsáveis por suas crises econômicas.


Um contraponto às hipóteses supracitadas se origina de autores mais ligados a correntes econômicas do estruturalismo e keynesianismo, que abordam o problema latino a partir do grau de desenvolvimento econômico, da perspectiva de adensamento tecnológico e da complexidade econômica, atestando que a inflação não é estritamente uma questão de política monetária e rigoroso controle das finanças governamentais.


Após explicitar as principais lacunas e inconsistências da literatura acerca da inflação, os autores se amparam no economista paquistanês-americano Anwar Shaikh e no cientista social brasileiro Ruy Mauro Marini, aliando a teoria inflacionária do primeiro com a teoria marxista da dependência do segundo por meio da transferência de valor da periferia para o centro, que seria mais um vetor de pressão contra os lucros obtidos, resultando em preços mais altos.


Shaikh sustenta que a concorrência entre empresas determina os preços com base na lucratividade setorial, ajustada pelos movimentos de capital entre setores. Essa abordagem, inspirada na economia clássica, é adaptada ao contexto contemporâneo de moeda fiduciária, substituindo a paridade com o ouro pela interação entre oferta e demanda agregadas. Assim, os preços refletem o poder de compra e a capacidade de oferta de bens.


Com a moeda fiduciária, restrições cambiais e fiscais tornam-se mais flexíveis no curto prazo, permitindo a expansão da demanda via crédito, especialmente após a popularização do cartão de crédito e outros mecanismos de financiamento. Contudo, se a oferta não acompanha a demanda, ocorre inflação. Segundo Shaikh, essa limitação está ligada à taxa de reinvestimento de lucros para expandir a produção, diferindo dos modelos neoclássicos, que assumem pleno uso dos fatores produtivos. Para os neoclássicos, barreiras como o salário mínimo seriam fontes de rigidez que limitariam a oferta e, consequentemente, a produção.


Fundamentada a teoria, o modelo de Shaikh determina a variação de preços com base em 3 fatores: poder de compra, rentabilidade líquida incremental e taxa de aproveitamento do crescimento.


Poder de compra (pp): podendo ser inflado por meio do crédito, um aumento do poder de compra é um vetor de alta do nível de preços (π), visto que sua influência sobre o produto nominal é maior que a influência sobre o produto real, já que o poder de compra afeta diretamente apenas a demanda agregada enquanto o produto real depende do reinvestimento dos lucros

Rentabilidade Líquida Incremental (𝑟𝑟l): o quanto se aumenta um lucro presente em relação ao investimento feito anteriormente (lucro atual depende do investimento feito no momento anterior), portanto, tendo efeito negativo sobre a inflação, visto que um mesmo investimento gera mais lucros e, consequentemente, maior aumento da oferta;

Taxa de Aproveitamento do Crescimento (σ): quanto se reinveste (I) da massa de lucros obtida, agindo, então, de forma positiva sobre o aumento de preços, já que, a um valor crítico de produção, o aumento de investimentos para a manutenção do mesmo patamar de lucros torna-se muito difícil, sendo assim, um aumento da demanda agregada repassado a um aumento de preços e não de produtos (oferta) para garantir essa constância na lucratividade.


Esse último componente citado pode ser responsável pela explicação parcial da crise de estagflação durante as décadas de 1970/80, quando países tentaram aplicar políticas fiscais anticíclicas e obtiveram como resultados o aumento da inflação e a manutenção do estado econômico estagnado, já que estímulos a demanda agregada, num cenário de valor crítico da produção, gerariam aumento dos preços ao invés de expansão da oferta, como foi observado.


Para entender a conexão entre a teoria de Shaikh e a teoria de Marini, deve-se analisar o mecanismo da taxa de aproveitamento do crescimento e esse repasse dos aumentos de preços. A análise central refere-se ao motivo desse ponto crítico da produção ser alcançado mais rapidamente em países em desenvolvimento (periferia) em comparação a países desenvolvidos (centro), e o argumento dos autores é baseado no fato do achatamento dos lucros latino-americanos acontecer antes do centro capitalista mundial. Esse fator decorre da posição de inserção da América Latina no mercado mundial como desfavorecida num mecanismo de “troca desigual”, onde as nações desfavorecidas “devem ceder gratuitamente parte do valor que produzem” e os lucros das trocas são distribuídos desigualmente em favor do país de produtividade mais elevada, ou seja, o ponto de achatamento de lucros é alcançado mais cedo, historicamente, por uma imposição de poder do centro desenvolvido contra a periferia por meio do comércio. Como compensação dessa perda de valor, as firmas latino-americanas buscam saídas na intensificação do trabalho, ou, como postula Marini, na superexploração do trabalho, para a garantia do patamar de lucros.


Os autores se baseiam em dois elementos da teoria da dependência de Marini para explicar a inflação nas economias periféricas. O primeiro é a transferência de valor na “troca desigual”, que reduz os lucros locais ao acelerar a pressão por crescimento e criar um descompasso entre oferta e demanda agregadas, elevando os preços. O segundo é a superexploração da força de trabalho como compensação à perda de lucros, gerando um excedente apropriado pelos capitalistas locais. Essa dinâmica pode intensificar a inflação, especialmente em contextos de luta sindical e pressão por direitos trabalhistas, como observado durante a redemocratização no Brasil.


Sintetizando, o artigo apresenta uma alternativa para o fenômeno inflacionário da América Latina, assim como de outras regiões subdesenvolvidas. O vetor das relações econômicas internacionais é notadamente bem ausente na literatura de correntes de pensamento econômico mais ligadas à ortodoxia, tanto pela análise dos países isolados (e apenas “taxas nacionais de inflação”) quanto pelas limitadas explicações para a fragilidade político-econômica atual que a macrorregião enfrenta, principalmente em decorrência principalmente do passado colonial (e seus reflexos na estrutura agroexportadora) e das intervenções militares, políticas e econômicas sofridas por esses países (refletindo na resposta de “instabilidade política e institucional” sem explicar sua origem no imperialismo sofrido).


Ao enfatizar o vetor do conflito capital-trabalho, os autores retiram a importância do avanço tecnológico atrelado ao sistema produtivo como fator de incremento na massa de lucros, sendo outra importante válvula de escape para a pressão inflacionária oriunda da Taxa de Aproveitamento do Crescimento. Nesse sentido, um complexo industrial nacional com alto grau de encadeamentos produtivos e adensamento tecnológico poderia tanto servir para a elevação dos lucros, via transbordamentos tecnológicos e produtivos para outros setores, quanto para a atração de divisas, pela via da exportação. Além disso, a formação desse complexo industrial poderia ser gestada com base em financiamento interno, sem gerar tamanha pressão inflacionária oriunda do endividamento externo, baseando-se no padrão de moeda fiduciária do contexto contemporâneo e detectado por Shaikh, aliando setor público e privado.


Referências:

LEITE, Leonardo; AYRES, Paula Helena; MARTINS, Álvaro. Uma hipótese para a inflação latino-americana: conexões entre a teoria da inflação de Anwar Shaikh e a teoria da dependência de Ruy Mauro Marini. 2024.

André Roncaglia de Carvalho, Rafael S. M. Ribeiro & André M. Marques (2018) Economic development and inflation: a theoretical and empirical analysis, International Review of Applied Economics, 32:4, 546-565, DOI: 10.1080/02692171.2017.1351531

Nell, K. S. (2023). INFLATION AND GROWTH IN DEVELOPING ECONOMIES: A TRIBUTE TO PROFESSOR THIRLWALL. Investigación Económica, 82(326), 41–97.

SARGENT, T., WILLIAMS, N. e ZHA, T. The conquest of south american inflation. Journal of Political Economy, v. 117, n. 2, p. 211–256

MARINI, R. M. Dialética da dependência. Germinal: marxismo e educação em debate, v. 9, n. 3, p. 325– 356

AISEN, A. e VEIGA, F. J. Does political instability lead to higher inflation? A panel data analysis. Journal of money, credit and banking, v. 38, n. 5, p. 1379–1389, 2006

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