A interdependência política do Banco Central do Brasil em perspectiva histórica
- Maria Júlia Teles Coelho
- 3 de out. de 2024
- 5 min de leitura
Atualizado: 11 de out. de 2024
Resenha de artigo:
CORAZZA, Gentil. O Banco Central do Brasil: evolução histórica e institucional. Perspectiva econômica, v. 2, n. 1, p. 1-23, 2006.

O processo histórico de institucionalização do Banco Central do Brasil é marcado por uma série de conflitos, desde os impasses pré-criação, perpassando pelo complexo sistema de divisão de atividades com outros órgãos econômicos estatais, até projeções administrativas mediante a independência da instituição, ainda não decretada no recorte temporal de escrita e publicação do estudo em 1995.
A criação dos Bancos Centrais mundo afora é marcada por reproduções processuais comuns entre suas histórias; ainda que guardem em si peculiaridades políticas territoriais manifestam diplomaticamente disputas claras de interesses sociais. Sociais, no sentido amplo da palavra, diz respeito à sociedade, ou ao menos, no caso do Banco Central do Brasil, de apenas uma parte dela.
A disputa pela máquina fiscal e monetária do governo foi, a princípio, com pouco apoio dos grupos que influenciavam as decisões econômicas da época. Os grandes proprietários agrícolas, o setor urbano e os banqueiros mantinham sua influência de forma velada, protegidos pela atuação conjunta do Congresso e do Banco do Brasil. Este último até então era o principal responsável pelo fomento nacional, comercial e agente do Tesouro, funcionando na prática como um banco central privado. Além disso, havia pouco incentivo governamental para desenvolver tal empreitada, uma vez que seriam criadas barreiras para limitar a emissão de moedas que até então era regida por motivações predominantemente partidárias.
Entretanto, existem forças das quais um país capitalista não consegue se opor; os rumos da administração econômica brasileira exigiam a criação de um Banco Central. Diferente do Federal Reserve, não houve uma crise específica que permitisse o deliberado estabelecimento da instituição. Em passos mais lentos, o Brasil começou com a Sumoc, em 1945. O órgão representou uma fase embrionária do processo, instaurada pelo presidente Eurico Gaspar Dutra, que se utilizou dos moldes legislativos autoritários herdados do governo Vargas para fundar um apêndice do Banco do Brasil (BB), visto que a Carteira de Redesconto, a Carteira de Mobilização Bancária e a Caixa de Depósito das reservas bancárias foram funcionalidades englobadas pelo BB.
Na década de 1950, a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) desempenhava um papel secundário no debate político-econômico brasileiro, gerenciando o controle de moeda e crédito em conjunto com o Tesouro e o Banco do Brasil. A Sumoc recebeu verdadeiras atribuições de um banco central, entre elas, a fixação de juros, fiscalização de bancos comerciais e controles cambiais. O Tesouro era responsável pela emissão do papel-moeda via Caixa de Amortização. O Banco do Brasil, em função dual l, combinava funções de banco central e de formulador de políticas econômicas. Ele operava carteiras de crédito, atuava como agente financeiro do Tesouro e, por um longo período, foi depositário das reservas voluntárias dos bancos comerciais. Um dos principais problemas desse arranjo era o vazamento de papel-moeda pelo Tesouro, que se acumulava no Banco do Brasil, dificultando o controle da emissão de pagamentos. A criação de um Banco Central livre de interferências e capaz de gerenciar a política monetária de forma eficaz surgiu como solução para mitigar essas distorções e evitar desajustes monetários.
Em 1964, pela Lei nº 4.595, foi criado o Banco Central do Brasil (Bacen). Sob regime militar, a gestão monetária brasileira começava a plantar os frutos de uma organização centralizada: o conselho da Sumoc foi substituído pelo Conselho Monetário Nacional e mesmo que sem o direito de concessão de créditos, o Banco do Brasil continuou como agente do governo. Contudo, a conta movimento do Banco do Brasil ainda permitia o financiamento de diversas operações com recursos do Bacen e contabilizações conflituosas entre os orçamentos. Essa prática sobrecarregava o Banco Central com despesas dos órgãos paralelos, como o BB e Tesouro.
Sob a premissa de garantir a computação de gastos e receitas de modo mais transparente, os orçamentos foram reorganizados, a Conta Movimento foi congelada – postura que custou a perda da autoridade monetária do Banco do Brasil - e a criação da Secretaria do Tesouro Nacional em concomitância ao estabelecimento do Orçamento Geral da União permitiram uma unificação orçamentária.
Se antes havia resistência, a partir dos anos 1980 os poderes pareciam caminhar a passos largos para alcançar um modelo de banco central clássico, até encontrarem mais um entrave: a zeragem automática. O tripé de forças constituído pelo Bacen, Tesouro e sistema financeiro driblava a reforma que proibia o Tesouro de financiar o déficit do sistema financeiro, sob a garantia de aplicações de baixo risco e com o desdobramento imediato do descontrole da liquidez.
O sistema de elevação de juros para gerência das reservas bancárias era uma tragédia anunciada pelo próprio Bacen, que persistia em injetar recursos no mercado; fator que anulava qualquer tipo de remanejamento dos aportes bancários. Enfim, uma bola de neve: as bases monetárias que serviriam de guias para as projeções administrativas do Bacen foram substituídas pela preocupação com a expansão da dívida pública. O questionamento mais pertinente perante esse cenário é: como impedir a retroalimentação do ciclo vicioso de desordem das contas públicas? Caminhos existem, mas as classes envolvidas não aparentavam se interessar em pôr um fim nesses trâmites fiscais um tanto quanto estranhos.
O rompimento das relações funcionais entre o Bacen e o Banco do Brasil se concretizou com a Constituição de 1988, em paralelo à separação do Bacen com o governo a partir de medidas como a proibição de financiamento do Tesouro. A formalização de mandatos fixos da presidência e o impedimento de demissão durante o mandato vieram apenas com a Lei Complementar n⁰ 179 de Fevereiro de 2021.
A independência do Bacen, um ideal antigo de pensadores liberais como Octavio Bulhões, Eugênio Gudin, Dênio Nogueira e Casimiro Ribeiro, foi pensada para garantir uma autonomia institucional, em conjunto com uma gestão monetária clara e pretensiosamente imparcial aos desejos dos grandes produtores agrícolas, industrialistas e bancários. Todavia, a busca pela independência foi uma empreitada mais longa, que começou antes da criação do Bacen e se concretizou no ano de 2021.
As desculpas utilizadas para obstaculizar a independência do Bacen variam desde padrões de financiamento até a incapacidade de coordenação política. Contudo, é válido ressaltar a ambiguidade contida em tais oposições; mediante a reformulação dos fatores problemáticos, haveria espaço para idealização de uma independência ou a estrutura em si do órgão impedia o decreto de autonomia?
Ainda que paradoxal, as entidades contrárias a modificações administrativas no Bacen estabeleciam críticas a problemas já existentes e dos se beneficiavam, como a submissão do Banco aos interesses privados. Nesse universo de críticas, as seguintes questões predominam no debate sobre a independência do Bacen:
- Com objetivo de atuação neutra, o Banco Central estaria isento de interesses particulares por sua direção? O mandato fixo resolveria essa questão?
- O aumento da rigidez de cláusulas legislativas determinadas pela Constituição de 1988 permitiriam, em contrapartida, liberdade assegurada da gestão monetária pura?
- Um órgão relativamente desvinculado do governo seria capaz de impor disciplina fiscal nas tomadas de decisões políticas?
Entre essas e outras questões, é fundamental reconhecer o papel do estabelecimento de regras que tornem a interação entre Bacen, Tesouro e sistema financeiro o mais claro possível. Assim, é possível garantir uma divisão lógica e coerente de tarefas de acordo com suas responsabilidades legislativas.