O Brasil vive um regime de crescimento baseado no setor financeiro? A hipótese do finance-led growth regime
- Leonardo Sodré Corrêa
- 27 de mar.
- 9 min de leitura
Um dos principais pontos de tensão na política econômica brasileira contemporânea é o conflito entre planejamento do governo e ações realizadas pelo Banco Central Brasileiro (BCB). Podemos traçar como ponto de partida para tais embates a metade final da gestão anterior (2023-24), de Roberto Campos Neto, marcada pelas altas subsequentes da taxa Selic em contradição com a intenção do Governo Lula III de fomentar a produção, o que necessitaria de crédito a baixos juros. Havia uma expectativa de redirecionamento da ação do BCB, com o início do mandato de Gabriel Galípolo, indicado por Lula, porém após reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) do dia 19/03/2025, foi decidido por um novo aumento da Selic, agora a patamares de 14,25% ao ano. Somado a isso, no período de transição entre mandatos do Bacen, o país vivenciou um súbito desequilíbrio na taxa de câmbio, no qual o dólar chegou ao pico de R$ 6,27 em 18/12/2024. Assim, começam a surgir questionamentos: seguiria Galípolo uma mesma lógica que Campos Neto, como apontado por David Deccache em entrevista aqui ao Observatório de Bancos Centrais? Há outro caminho que não seguir uma política monetária contracionista?
O BCB está de mãos atadas de acordo com a atual situação do país? Se formos apontar responsáveis, se trata da conjuntura ou do próprio Bacen? Para contribuir para discussão e estimular a reflexão adicionando a ela o espectro da financeirização como um dos determinantes da macroeconomia brasileira, apresentamos uma resenha do artigo “Finance-led growth regime no Brasil: estatuto teórico, evidências empíricas e consequências macroeconômicas”, de 2009.
Nada mais justo do que começar por definir o processo de financeirização e seus antecedentes no Brasil. Com o colapso do padrão monetário de Bretton Woods, que definia taxas fixas de câmbio de outras moedas com relação ao dólar e do dólar com relação ao ouro, somado às inovações tecnológicas (revolução nas comunicações e fluxos informacionais) e financeiras (novos ativos como derivativos, mecanismos de securitização, etc.) e ao incentivo da busca por rendimentos devido aos períodos de crise das décadas de 1970/80 (estagflação, choques do petróleo, Choque Volcker), nota-se uma reorganização do ambiente econômico a nível global, com novos agentes (players) e ciclos de capitais, assim como a internacionalização do mercado de capitais.
Desse contexto, podemos tirar algumas definições do processo de financeirização, como “norma sistêmica de riqueza” que condiciona o funcionamento da macroeconomia e o comportamento dos agentes de acordo com a lógica financeira (Braga, 1985 apud Bruno et al., 2009, p. 8), assim havendo uma mudança no padrão de acumulação, que passa do comércio e da produção de mercadorias para o eixo financeiro, ou seja, transferência de capital na expectativa de receber futuros dividendos e ganhos (Krippner, 2005, p. 174).
Desse modo, também é possível notar e explicar o movimento de investimentos, deslocados de empreendimentos que exijam sua fixação em maquinário, equipamentos, construções, ou seja, formação e acumulação de capital fixo, em direção a aplicações financeiras e investimentos em carteira, o que denotaria uma aplicação de recursos não necessariamente eficiente, incompatível com a hipótese de mercados eficientes (Aglietta, 1995 apud Guttmann, 2008, p. 24). Assim, podemos concluir uma definição mais totalizante, de que a financeirização é o crescimento do papel de motivos, mercados, atores e instituições financeiros na operação das economias nacionais e internacionais (Epstein, 2005, apud Guttmann, 2008, p. 12).

Com base nesses pressupostos, gesta-se um novo aspecto na discussão: é possível a financeirização gerar efeitos de crescimento produtivo numa economia? Acerca disso, Stockhammer (2007) propõe um referencial teórico, no qual o padrão inaugurado com a financeirização caracteriza-se como “finance-dominated accumulation regime”, ou seja, um regime de acumulação cujo paradigma vigente é o das finanças, que moldam o padrão e o ritmo de acumulação assim como podem afetar positiva como negativamente o crescimento (p. 185). Assim, cria-se uma divisão em que as finanças, ao causarem um efeito positivo no crescimento, via efeito-riqueza (incide no consumo) e efeito-acelerador (estímulo produtivo) do investimento, o regime pode ser também classificado como “finance-led growth regime”. Dessa forma, permite-se distinguir, dentre regimes moldados pela acumulação financeira, se esta possui ou não impactos positivos ou negativos sobre o crescimento econômico (finance-led), objetivo do estudo realizado pelos autores acerca do caso brasileiro.
Para tanto, os autores estabelecem como ponto de partida do processo de financeirização no Brasil a Reforma Bancária (1964-67), baseado no modelo americano de mercado de capitais (SMC) e originou o próprio BCB (1964). Desta reforma, estabeleceram-se bases para que o Sistema Financeiro Nacional (SFN) funcionasse pautado pelo investimento privado, ou seja, haveria um mercado de capitais para fomentar o investimento, porém o modelo que realmente vigorou sustentou-se pelo crédito público e externo, em contexto de forte liquidez, por intermédio de contratos de empréstimos com instituições estrangeiras feitos por bancos de investimento, que posteriormente os repassariam a instituições privadas nacionais em arranjos (conhecidas como “operações 63”) menos custoso que os domésticos (Hermann, 2002, p. 6).
Consequentemente, com o estímulo governamental a fusões e incorporações bancárias adicionado à adaptação deste setor à acumulação em novos moldes (via ativos financeiros), houve uma centralização visando à maior captação de recursos do exterior. Em momento posterior, inicia-se uma segunda fase da concentração bancária, de modo decisivo para a financeirização brasileira: a queda da inflação com o Plano Real desloca o eixo de acumulação financeira dos ganhos inflacionários, aqueles baseados na indexação, em direção aos derivativos e títulos de renda fixa conectados ao endividamento público. Isto se dá, pois o Plano Real amparou-se em uma política de altas taxas de juros para debelar a inflação, razão pela qual a Selic atingiu patamar inferior a 20% a.a. apenas durante cinco meses entre 07/1996 e 07/1999, com pico de 45,67% a.a. entre outubro e novembro de 1997 (devido a ataques especulativos), o que propiciou justamente esse deslocamento da acumulação financeira em direção aos títulos ligados à dívida pública, logo, remunerados com base na Selic.

Entender os regimes monetário-financeiros (RMFs) estabelecidos neste contexto é um fator fundamental para a compreensão dos fenômenos econômicos vivenciados no país quase 30 anos depois, ou seja, a política econômica e o impacto da financeirização são essenciais para uma interpretação mais aprofundada das crises cambiais e da constância no patamar alto de juros que condicionam a macroeconomia brasileira, assim como para delimitar o papel tanto do BCB quanto de seus integrantes, como Campos Neto e Galípolo, nesta conjuntura.
Em seu estudo, os autores separam o período de 1980-2008 em dois RMFs: um que abrange o interregno entre 1980-1993, caracterizado como dual e inflacionista, e outro, respectivo a 1995-2008, de forte restrição monetária e financeirização pela renda de juros:
I. 1980-1993: processo de “financeirização pelos ganhos inflacionários”, isto é, pela indexação e correção monetária, elo que explica o caráter dual do RMF, já que coexistiam “duas moedas”, a oficial (em si, M1), que servia de unidade de conta e meio de pagamento, e a financeira-indexada (lastreada em títulos públicos), servindo de reserva de valor como ativo financeiro de alta liquidez, evidenciado pelo intenso crescimento do VA oriundo do setor financeiro conforme a escalada inflacionária (10% de aumento nas taxas de inflação correspondendo a 3,4% de crescimento da participação do VA financeiro no PIB). O período tem como fim o estabelecimento do Plano Real, controle da inflação e o deslocamento do eixo de acumulação financeira dos ganhos inflacionários para os derivativos e títulos de renda fixa baseados na taxa de juros e no endividamento público.
II. 1993-2008: marcado por um processo de “financeirização pela renda de juros”, visto que cresce o papel de ativos financeiros baseados no mecanismo da Selic, ou seja, com a alta de juros, títulos ligados a ela valorizam-se, o que foi suficiente para o deslocamento do eixo de acumulação financeira. Os autores descrevem, então, um vínculo estrutural entre endividamento do Estado internamente e renda oriunda de juros, tendo em conta que a razão dívida pública interna líquida/PIB cresceu de 17,4%, em 1991, para 52%, em 2009, atualmente encontrando-se no patamar de 66,9%, atestando um processo de financeirização calcado em endividamento público interno. Destacam, também, a composição da receita operacional do agregado do mercado financeiro: 84% oriunda da renda de títulos e valores mobiliários, em comparação com 10% respectivo a operações de crédito ao consumo e ao investimento produtivo. Tal fato demonstra que o SFN é disfuncional para a promoção de crédito e para o crescimento econômico, porém, no que concerne à renda de juros, é altamente eficiente, também corroborado pelo efeito substituição entre fixação de capital produtivo e rentabilidade financeira. A exceção do período é encontrada entre 2004-2009, quando a taxa de acumulação de capital fixo torna a crescer, explicando parte do forte crescimento do PIB no período, o que corrobora com a hipótese de um regime “finance-led”, já que as condições macroeconômicas eram favoráveis (boom das commodities e pré-crise de 2008), em arranjo frágil, como ficou atestado pelo período de estagnação subsequente.

Tendo estabelecidas tais questões, torna-se possível traçar uma análise muito mais robusta da recente conjuntura econômica nacional, assim como responder e aprofundar as questões inicialmente enunciadas.
Fica claro que a questão do câmbio relaciona-se mais a uma determinação exógena do que endógena, ou seja, como essa taxa é intimamente relacionada ao montante de capital estrangeiro investido no país, sua alteração liga-se mais às decisões dos agentes do setor externo em comparação com o setor público nacional, por exemplo, tendo em vista que não existem restrições quanto à entrada/saída deste investimento (“controle de capitais”). É evidente que o aumento da taxa de juros serve como incentivo positivo à manutenção de porção destes capitais, no entanto deve ter-se em conta seus impactos, como o incremento da relação dívida/PIB e o incentivo negativo ao crédito e ao financiamento produtivo interno. Questões como estas devem ser esclarecidas em estudos de impacto, analisando e estimando a quantidade de capitais que viria a ser mantida, seu impacto no câmbio (uma vez que são oriundos majoritariamente de investimento em carteira, com pouco impacto em capital fixo) e a perspectiva das pressões inflacionárias, assim como comparando o efeito interno do aumento dos juros, especificamente quanto ao potencial barateamento, via financiamento em baixa da Selic, da produção nacional, e a possibilidade de um efeito substituição de produtos/insumos importados (encarecidos na perspectiva de fuga do capital externo e depreciação cambial) pela produção nacional, mitigando o efeito inflacionário.
Já a elevação recente dos juros como resposta ao crescimento da inflação, originada no setor alimentício, não se sustenta de igual forma. Tendo explicitado os efeitos do aumento da historicamente alta taxa de juros brasileira, fica claro seu impacto maior nos produtores, dependentes de crédito barato para melhores fluxos produtivos. Em contrapartida, outros mecanismos poderiam ser acionados, como um reforço à Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), mantenedora de estoques de alimentos que poderiam ser remetidos ao mercado de modo a controlar a escalada inflacionária, e ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), responsável pela compra da produção da agricultura familiar e posterior doação social. Tais mecanismos poderiam agir de forma mais eficiente e menos nociva à produção pelo fato de o processo inflacionário de alimentos não estar ligado a um aquecimento da demanda, tendo em vista sua inelasticidade e o impacto do efeito riqueza (aumento da renda origina aumento do consumo, este deslocando-se em direção a bens “de luxo” /manufaturados em comparação com alimentos), ou a uma escassez de oferta, porém está relacionado ao seu direcionamento para a exportação. Assim, suprindo parte da demanda por alimentos, mitiga-se o processo inflacionário sem que haja a necessidade de elevação dos juros.
Por fim, evidenciou-se que o papel da gestão atual ou da anterior acerca da ótica do BCB é menor que apontava-se, tendo em vista que a taxa de juros nacional é historicamente alta. O movimento de crescimento dos juros possuem mais determinantes que somente uma “inflação descontrolada”: o padrão elevado da Selic serve como mecanismo de acumulação financeira baseado na renda dos juros, como explicitou-se após a leitura do artigo. Em condições específicas, favoráveis, esta acumulação pode transbordar para o setor produtivo, em regime de crescimento econômico a taxas moderadas, como apontado pelos autores, um esquema “finance-led”. Porém tal equilíbrio é instável, ao primeiro sinal de revés em tais condições reverbera em aumento de juros, cujo objetivo primário é servir de rede de segurança para a valorização patrimonial, ocasionalmente mitigando situações adversas, como o processo inflacionário, regredindo ao regime de acumulação “finance-dominated”. Em suma, a tendência, com o mandato de Galípolo, não é uma alteração desse quadro: menos por ótica ou visão técnica pessoais; mais, sim, pelo padrão estabelecido e reforçado desde a década de 1990.
Referências Bibliográficas:
BRUNO, Miguel A. P.; DIAWARA, Hawa; ARAÚJO, Eliane C.; REIS, Anna C.; RUBENS, Mario. Finance-led growth regime no Brasil: estatuto teórico, evidências empíricas e consequências macroeconômicas. 2009. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/handle/11058/2577
Referências complementares:
Guttmann, 2008; Stockhammer, 2007; Krippner, 2005; Hermann, 2002
GUTTMANN, Robert. Uma introdução ao capitalismo dirigido pelas finanças. Novos estudos CEBRAP, 11-33. 2008.
HERMANN, Jennifer. Financial structure and financing models: The Brazilian experience over the 1964–1997 period. Journal of Latin American Studies 34, no. 1: 71-114. 2002.
KRIPPNER, Greta R. The financialization of the American economy. Socio-economic review 3, no. 2: 173-208. 2005.
STOCKHAMMER, Engelbert. Some stylized facts on the finance-dominated accumulation regime. Competition & change 12, no. 2: 184-202.2007.