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Um retorno ao passado para entender o presente: o debate sobre o Banco Central do Brasil

A história contemporânea do Brasil é marcada por grandes mobilizações políticas e grandes debates sobre a situação nacional, sobretudo no campo da economia, com campanhas marcantes desde “O Petróleo é Nosso”, pela criação da Petrobras na década de 1950, às manifestações em contexto de crise/estagnação econômica do Movimento dos “Caras-Pintadas”, próximo ao processo de Impeachment de Fernando Collor de Mello (1992), e das “Jornadas de Junho”, no fim do primeiro governo de Dilma Rousseff (2013). Dentre esses diversos episódios históricos, há um movimento que constantemente fica afastado dos principais holofotes: a mobilização pela Reforma Bancária (1930-40) e pela criação de um Banco Central.

Embora a principal autoridade monetária brasileira tenha saído do papel apenas em 1964, a ideia da criação de um banco central circulava nos principais debates desde a década de 1910 (Lourenço-Filho, 2024, p. 2), ganhando força durante a reforma supracitada. Atualmente, existem vários tópicos de debate quanto ao Banco Central Brasileiro (BCB), seja no campo econômico em si (determinação da taxa de juros, swaps cambiais...) ou no campo administrativo-institucional (autonomia plena do BCB e sua estrutura de funcionamento), discussões estas que são pautadas majoritariamente por uma visão econômica alinhada à ortodoxia, fato identificado pelo Mestre e Doutorando em Economia Marcelo Lourenço-Filho (FEARP-USP), motivando-o a reconstruir o cenário das décadas de 1930/40 e reviver o pensamento de Horácio Lafer e Abelardo Vergueiro César, duas figuras importantes para a época e para o pensamento econômico nacional, no artigo “Um Banco Central para amparar a produção: as ideias de Lafer e Vergueiro César sobre a autoridade monetária no Brasil (1935-1949)”.


Para entender a contribuição de ambas as figuras à ciência econômica nacional, deve-se retraçar a conjuntura política e econômica que perpassava o Brasil: com o período da Grande Depressão, escancarou-se a necessidade de mudanças no sistema econômico brasileiro, caracterizada por Lafer como “semicapitalista” e marcado por “uma estrutura produtiva pouco desenvolvida e vulnerável do ponto de vista externo” (Lourenço-Filho, 2024, p. 5), em decorrência da forte dependência de produtos primários com formação de preços no exterior. Com a Revolução de 1930, inicia-se um processo de mudança na forma de enxergar o sistema econômico nacional por parte do aparato estatal e o debate público torna sua atenção aos processos de desenvolvimento e estabilização econômica, caracterizado como início de um “período desenvolvimentista”.


A partir da reorganização política pós-1934, abriu-se uma janela de oportunidade para concretizar reformas e modernizações em gargalos produtivos apontados pelos principais expoentes do debate público, originando uma série de reformas no sistema econômico nacional.


Um dos principais gargalos expostos era o do financiamento da produção, visto que não havia uma autoridade monetária isolada, sendo o Banco do Brasil responsável pelas funções de emissão monetária e concessão de empréstimos interbancários (CAMOB), operações de redesconto (CARED), financiamento do orçamento de Estados e Municípios, política cambial (Carteira de Câmbio do BB) e de comércio exterior (CACEX) (Salomão, I. C.; Oliveira, V. S.; 2024; p. 449-457).


Diante da atuação do Banco do Brasil e da restrição existente ao crédito nacional direcionado à produção, Abelardo Vergueiro César e Horácio Lafer chegaram à conclusão de que era necessária a criação de um órgão específico e destacado do mercado (já que o BB era também um banco comercial) com as responsabilidades de administração e regulação das finanças nacionais, para ambos um ponto nevrálgico no desenvolvimento das forças produtivas. Embora o BCB só tenha surgido em 1964, importantes conquistas foram alcançadas na estrutura do Sistema Financeiro Nacional (SFN): a reforma da CARED (1935), a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), a criação do BNDE e do Banco do Nordeste.


Embora tais feitos tenham sido concluídos, havia uma forte oposição no campo da economia, composta em sua maioria por ortodoxos como Eugênio Gudin (Ministro da Fazenda de Café Filho, Vice-Presidente que assume em 1954 após o suicídio de Vargas) e Octávio Gouvêa de Bulhões (Diretor da SUMOC posteriormente em 1961-63), além de divergências entre Vergueiro César e Lafer, principalmente quanto ao “tipo” de banco central a se criar e quais incumbências teria.


Tanto Vergueiro César quanto Lafer identificavam problemas na matriz produtiva brasileira, e convergiam em suas análises. O primeiro, paulista, identificou como raiz do problema nacional a baixa produtividade do ambiente econômico nacional e sua vulnerabilidade a variações externas de preço, ou seja, a produção nacional seria orientada à pauta exportadora, cuja formação de preços é exógena ao país produtor, dessa forma estando à mercê dos ciclos de alta e baixa dos preços, intensificados com a instabilidade do período, o que resulta numa insegurança maior aos produtores e um nível de produtividade menor, caracterizando o que chamou de estrutura produtiva “neocapitalista”.


A partir desse enfraquecimento da produção, derivam-se outros problemas, dentre os quais Vergueiro César apontou como reforço a condição supracitada o financiamento dos déficits orçamentários, visto que, devido a essa estrutura produtiva “neocapitalista”, a máquina pública lidava com “problemas mais elementares” do que o “desmando financeiro” (um argumento similar ao do debate atual da suposta “irresponsabilidade fiscal”) e dependia das emissões para a administração do déficit, coibindo investimentos que estabilizariam a produção sobre bases mais sólidas.


Lafer possuía uma concepção parecida do problema nacional, identificando como fator primordial da instabilidade produtiva a ausência de garantias monetárias para aqueles que a realizavam, ou seja, a moeda nacional não estava desempenhando sua “função precípua” de “desenvolvimento dos recursos nacionais [...] visando à melhoria do padrão de vida da população” (Lourenço-Filho, 2024, p. 11).


O paulistano chegou a afirmar que os sistemas bancário e monetário brasileiros nunca estiveram ao lado da produção, tendo, o primeiro, um desenvolvimento incipiente ao passo de constantemente ameaçar a estrutura de crédito nacional pelo receio quanto à falta de recursos, e o segundo, falhando na tarefa de orquestrar o movimento das finanças brasileiras, caracterizado como um cenário de “bazar de crédito” por Lafer devido a bagunça identificada, repassando o cenário de insegurança ao produtor brasileiro e reforçando o problema identificado por Vergueiro César.


Suas divergências, entretanto, começavam no funcionamento da economia: embora ambos concordassem quanto à existência de entraves, que eram maiores que uma suposta má-gestão no processo de desenvolvimento brasileiro, Vergueiro César acreditava que a criação do BC deveria ser imediata para a superação dos problemas que enfrentavam, de modo que a instituição fosse flexível o suficiente para ir se adaptando conforme mudassem as necessidades do projeto nacional.


Lafer, por outro lado, era contra a criação imediata, o que foi denominado “argumento da oportunidade”, pregando que a criação do BC fosse executada em uma conjuntura internacional mais favorável tanto a atração de reservas quanto a estabilidade política para a conclusão de outras reformas ditas essenciais para o projeto. Posteriormente, Lafer volta atrás e defende a implementação imediata do BC, principalmente pela sua capacidade de orquestrar o processo de “especialização” do crédito e estímulo à produção.


Outro ponto de discordância ocorria acerca do funcionamento da moeda e dos padrões monetários internacionais: Lafer e Vergueiro César julgavam o Padrão Ouro-Libra/Ouro Clássico como rígido e engessado para a produção e o funcionamento do país, porém enquanto o Paulistano gradualmente abandonou a ideia de um padrão monetário com qualquer tipo de lastro, o Paulista manteve-se na defesa de uma moeda lastreada em algum metal, com uma menor proporção para garantir maior liquidez.


Contudo, os dois concordavam quanto a necessidade de uma ampliação das capacidades legais da autoridade de redescontos (na época, o BB por meio da Carteira de Redescontos-CARED) para suprir as “necessidades reais da economia” e o estímulo à produção. Assim, ambos encontravam-se em um mesmo campo, que enxergava o BC como um meio de desenvolvimento das capacidades reais de produção do sistema econômico brasileiro, e não apenas como mero instrumento de estabilização da economia, como via o campo mais ligado a ortodoxia e ao liberalismo. A confluência de ideias fica evidente pelo respeito imenso e elogios efusivos ao se referenciarem em declarações públicas.


Ao realizar a defesa de um BC com a finalidade de estimular o desenvolvimento das capacidades produtivas nacionais, os dois convergiam em ideias para a criação da principal autoridade monetária. Para Vergueiro César, as atribuições do banco estariam em três principais campos:

        I.            Operacional: campo responsável pelas ações diretamente relacionadas a moeda nacional, como “reger” a circulação monetária, câmbio e redescontos;

     II.            Crédito: abrange todas as incumbências relacionadas à coordenação do movimento do crédito e às garantias para a manutenção do setor bancário;

  III.            Mobiliário: refere-se à coordenação “suprema” do mercado de capitais e das bolsas de valores nacionais.


Acerca do primeiro campo, ambos apoiavam uma maior liberdade para o uso de redescontos a fim de ampliar a oferta de crédito à produção e ampliar as garantias aos bancos, fato que ocorreu com a Reforma da CARED como citado anteriormente. Os dois acreditavam que retirar tal função do BB, banco comercial sob administração da federação que na época supria a ausência de uma autoridade monetária específica, e atribuí-la ao BC potencializaria o funcionamento do sistema de crédito nacional, com o banco comercial provavelmente sendo “a instituição bancária que mais se aproveite (da reforma)”, segundo Lafer (Lourenço-Filho, 2024, p. 16).


Outra questão importante está ligada à administração dos mecanismos operacionais. Vergueiro César era um árduo defensor da autonomia do BC com relação ao Estado para que seus diretores tomassem suas decisões meramente amparadas em dados estatísticos e “critérios técnicos” (sugere ainda a criação de um “laboratório de pesquisas econômicas e financeiras”) sem que houvesse pressões políticas, já Lafer, embora inicialmente propusesse o que chamou de  “ecletismo prudente” (um BC de capital e comando decisório mistos, com o Estado mantendo apenas um terço de ambos), posteriormente passa a defender um modelo com capital totalmente estatal e conselho deliberativo indicado plenamente pelo governo, a fim de evitar pressões de interesses setoriais em detrimento do interesse nacional (Lourenço-Filho, 2024, p. 15).


O tópico do crédito e da ação de um BC para seu funcionamento ótimo é o mais desenvolvido, tanto por Vergueiro César quanto por Lafer. O primeiro acreditava que o problema do crédito aos moldes do momento era o pouco amparo ao produtor, em grande parte pelo desconhecimento das demandas regionais/localizadas e das “condições locais. Assim, propunha que o molde do BC a ser adotado fosse um parecido com o dos Estados Unidos no Federal Reserve: um modelo descentralizado, mas que não perca a “unidade de estrutura e ação”, atendendo às demandas regionais. Ao mesmo tempo, Vergueiro César defendia a criação de bancos de crédito especializado nas mais diversas áreas, como no financiamento imobiliário e no setor industrial.


Já Lafer enxergava que o crédito, no Brasil, era um “problema de conjunto”, já que uma série de fatores impedia o amparo eficiente à produção, como a ausência de uma “política bancária bem estabelecida”, baixas garantias aos bancos comerciais e uma fonte de redescontos ligada ao BB (concorrente dos outros bancos comerciais), e reformas na lei monetária e bancária, que, inicialmente no pensamento de Lafer, seriam pressupostos necessários para a implantação do BC (“argumento de oportunidade”).


Assim, o paulistano endossa a ideia de Vergueiro César acerca dos bancos direcionadores de crédito, pois “quanto mais especializado o crédito mais perfeito ele é”, principalmente se seu objetivo final resultar em um aumento da riqueza e da produtividade. Portanto, para Lafer, um papel crucial do BC seria a garantia da liberação de linhas de crédito para a produção, mesmo que seja necessário haver uma ampliação dos meios de pagamento, pois essa seria considerada apenas emissionista, ou seja, emissão sem lastro, e não inflacionista, que seria a emissão acima das necessidades reais da economia.


Quanto ao último campo de ação, ambas as figuras concordam acerca da importância de haver um controle nacional sobre o mercado de capitais, essencialmente para garantir a manutenção de uma boa orientação do crédito, sendo Vergueiro César defensor da criação, também, de um Mercado Nacional de Valores Mobiliários, a fim de integrar e intensificar o fluxo de recursos no SFN, o que também forçaria, segundo ele, um aprimoramento na legislação vigente. Para ambos, a existência de um mercado financeiro seria um fator importante para o desenvolvimento do sistema bancário, tido como incipiente, e para uma maior mobilização de capitais em direção ao sistema produtivo, desde que orientado corretamente, sendo, portanto, mais uma incumbência-chave do BC a ser criado.


Embora Vergueiro César e Horácio Lafer tenham sido figuras importantes para essa discussão e, principalmente, para o seu tempo, o impacto no processo de criação do BCB foi tímido. A principal autarquia econômica brasileira foi instituída apenas em 1964, primeiro ano de Ditadura Militar, no qual a forma de governabilidade era “por decretos”, meio pelo qual Castelo Branco instituiu juntamente ao BCB o Conselho Monetário Nacional (CMN).


A minimização do impacto das ideias dos paulistas, que antes tentaram a criação do BCB duas vezes (com os projetos “Souza Costa” e “Correia e Castro”), fica ainda mais evidente ao se analisar a atuação do Bacen nos primeiros anos após sua criação, sendo mero instrumento de estabilização do país, com as medidas de adoção de nova moeda (Cruzado-Novo) e contenção de gastos, visando a contenção da inflação. Assim, a criação do Banco Central “representou uma tentativa de reorganizar a política monetária e financeira do Brasil”, sendo instituído “com o objetivo de ser o emissor exclusivo de moeda, controlar a inflação e estabelecer uma política monetária mais eficaz” (Souza, 2024, p. 7), aspectos que o assemelham intensamente ao projeto de Gudin e Bulhões, este último, Ministro da Fazenda durante o governo Castelo Branco (1964-67).


Concluindo, reviver o momento do debate público pela instituição do BCB e, principalmente, o pensamento e os projetos de Vergueiro César e Lafer, como realizado pelo autor do artigo, são pontos essenciais para enriquecer debates atuais quanto à atuação da autoridade monetária.


Tópicos como a alta taxa de juros, o descompasso entre a política econômica do governo atual com as medidas implementadas pelo BC, embates entre o anterior presidente do Bacen Roberto Campos Neto e personalidades do atual governo Lula, a formulação de metas muito restritivas ao crescimento baseado em “critérios técnicos” ou as denúncias de manipulação do Boletim Focus podem ganhar um nível maior de profundidade ao se considerar o projeto de BC que foi consolidado no Brasil, suas discussões antes de sua instituição e a retomada de tópicos como o padrão monetário internacional vigente e estratégias para o desenvolvimento do país, não apenas sua estabilização no curto e no médio prazo.


É necessário pautar as discussões acerca da economia brasileira com um projeto de longo prazo realmente capaz de moldar a estrutura produtiva nacional, rompendo com a condição de subdesenvolvimento e estagnação, direção seguida por Marcelo Lourenço-Filho ao dar notoriedade, novamente, para as ideias destas duas grandes figuras da economia política e do pensamento econômico nacional.

 

Referências Bibliográficas:

LOURENÇO-FILHO, Marcelo. UM BANCO CENTRAL PARA AMPARAR A PRODUÇÃO: AS IDEIAS DE LAFER E VERGUEIRO CÉSAR SOBRE A AUTORIDADE MONETÁRIA NO BRASIL (1935-1949).

SALOMÃO, Ivan Colangelo; OLIVEIRA, Victoria Silva. Banco do Brasil: de autoridade monetária a banco comercial. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais, v. 15, n. 31, p. 447-477, 2023.

SOUZA, Mateus Costa de. O Banco Central do Brasil: da criação em 1964 à independência em 2021. Observatório de Bancos Centrais. Rio de Janeiro, p. 1-35. set. 2024. Disponível em: www.observatoriobc.com.

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